Um novo olhar para voar

“Há escolas que são gaiolas e há escolasque são asas”, já sinalizava Rubem Alves em sua obra Gaiolas ou asas? (2011). É baseado em tal reflexão que explicitamos que, como escolas que são asas, se apresenta o atendimento educacional para alunos em tratamento médico, pois essencialmente, pensamos que não basta ensinar, é preciso abrir espaço para que os alunos voem. Voem alto! Busquem seus objetivos, prezem por suas vidas e almejem conquistas para além da doença. É preciso educar para que eles possam agir sobre a própria história e não somente reagir ao disposto em seu meio. 

Faremos o relato do vôo alçado por uma das pacientes assistidas pela Casa de Apoio à Criança com Câncer Durval Paiva.  Esse relato trata-se de um resgate. Resgate para a vida, para o mundo, para construir um futuro.

Essa história teve início em meados do ano de 2015 com a paciente F.P., quando por consequência de uma displasia medular foi submetida a um transplante de medula óssea. Embora esse diagnóstico não seja oncológico, os procedimentos terapêuticos adotados se assemelham ao tratamento contra o câncer, sobretudo as demais implicações que este tem na vida de crianças e adolescentes.

A prévia do transplante trouxe muita euforia e esperança que dias melhores estavam por vir. No entanto, os desdobramentos do procedimento acarretaram em um leque de reações não esperadas. O isolamento comum que duraria em torno de três meses, se prolongou por oito meses e vinte e um dias (contagem de tempo que ela reforça a cada relato sobre sua experiência). Por consequência desse longo período isolada, desenvolveu um quadro depressivo que a impossibilitava manter o mínimo de relações.

Negava toda e qualquer tentativa de aproximação, fosse ela iniciada pelas assistentes sociais e até mesmo pelo serviço de psicologia da instituição.

A demanda de F.P. chegou ao setor de educação. Ela estava impossibilitada de frequentar a escola desde o ano de 2014, porém, inicialmente apenas era solicitado o envio de alguns materiais e livros, na tentativa dela aceitar e ocupar seu tempo de outras maneiras. Todas as tentativas frustradas!

Então pensamos em conjunto com a equipe multidisciplinar que o caminho ideal poderia estar na mobilização da mãe para que o incentivo e exemplo chegassem à filha. A escuta da mãe nos deu uma diversidade de possibilidades. Ouvimos suas angústias, mas, principalmente, o desejo de ter sua filha de volta.

Orientada pela equipe, a mãe começou a participar das atividades em grupo na sala de artes, bem como, no grupo de canto coral da instituição.

Uma pequena mudança de perspectiva acontecia dentro desse minúsculo núcleo familiar que passava seus dias em um quarto de isolamento. Naquele momento, um pouquinho do universo externo fazia parte da rotina, antes adormecida pelo isolamento.

Aos poucos, F.P. expressava, mesmo que timidamente, sua vontade de participar das atividades. Se abriu para novas amizades e também para o universo de possibilidades que o mundo lá fora prometia.

A sementinha que foi plantada começou a crescer e fazer com que a aluna observasse e desejasse ir muito mais além, movida principalmente pelo exemplo da sua mãe. Conquistada a confiança, o processo educativo foi retomado. F.P. afirmava: “Quero concluir meus estudos. Ser alguém na vida. Fazer uma faculdade de nutrição e ajudar as pessoas”.

Em um relato concedido a equipe da classe domiciliar, F.P. expôs: “Minha mãe sempre foi muito protetora e só fazia o que o médico falava, então, primeiro ela rejeitou a ajuda de todos. Ela ficava com muito medo por tudo que a gente já tinha passado. As professoras não desistiram. Ficaram insistindo, insistindo, até que, certo dia, ela me deixou participar. Foi aí que eu voltei a estudar. Eu recomecei a fazer tudo que eu gosto e ainda abri minha cabeça para novas coisas. Eu vivia com muito medo por tudo que já tinha vivido – quem passa por um transplante sabe do que eu estou falando. Mas com muita persistência das professoras eu estudei e terminei o ensino médio. Foi a meta desse ano! Agora é daqui para a frente! Deram corda, agora pronto! ”

Paulo Freire nos falava do “sonho possível”. Este sonho ou realidade desejada não se refere a uma idealização ingênua do que queremos ou almejamos, ela é resultado de uma reflexão crítica acerca das condições sociais que vivemos. Conhecer essas condições faz com que elas não sejam encaradas de forma determinista, e sim, que ela é mutável através da participação dos sujeitos que a conformam. Esse sonho é o que nos move no serviço de educação hospitalar e domiciliar. Na adversidade descobrimos que podemos ser capazes de ir muito mais além do que o estigma da doença e os limites que a realidade social impõe.

F.P. foi além, tornou seu sonho possível e, no ano de 2017, a aluna concluiu o ensino médio na classe domiciliar da instituição.  Cumpriu o objetivo que se tinha proposto. Retomou sua alegria de viver, suas relações, seus prazeres pessoais e mais ainda, deixou toda a equipe orgulhosa em ver seu esforço para continuar superando e vencendo todos os obstáculos da vida.

Gabriella Pereira do Nascimento

Coordenadora Pedagógica - Casa Durval Paiva

Por Gabriella Pereira do Nascimento

Artigos Relacionados